Em1974, Roberto Rossellini, cineasta da geração de ouro do
cinema italiano, realiza uma série para a televisão italiana de seu nome «Cartesius».
Os episódios decorrem de forma tranquila e sobria pela vida do famoso filósofo
francês seiscentista num registo de realização completamente desprovido dessa
espectacularidade que os cânones hollywoodescos consagraram em verdade
absoluta.
Tal relato desapaixonado (que em certas passagens se limita
a reproduzir textualmente trechos das obras mais famosas do autor de «O
Discurso do Método» e «Princípios da Filosofia»), tem tanto de didáctico como de
revolucionário, numa série realizada em “contra-corrente” com a tendência das
emissões televisivas italianas do principiar de uma outra revolução: a
revolução cultural.
Como pano de fundo da série, temos uma época em que o ensino
escolástico, um pouco por toda a Europa, continuava vivo e de boa saúde,
propagando a sua abordagem jesuítica do ensino, pseudocientífica, promíscua em
dados empíricos e preconceitos ideológicos.
A esta miscelânea académica conservadora do status quo,
Descartes contrapõe o método: a dúvida como momento essencial na busca de um
conhecimento assente em princípios sólidos, de bases dedutivas ancoradas na “sicurezza”
dos números.
Este é o início de
uma perspectiva civilizacional que culmina no optimismo positivista, e que
ainda hoje povoa o imaginário do mundo ocidental: a fé na ciência como chave do
progresso e da felicidade humanas.
Valores como os que estão no cerne da visão de Descartes são
de uma perene validade, mas permitamo-nos também nós a uma dúvida metódica
invertendo os dados da história: e se um novo obscurantismo surgisse
precisamente ancorado nos elementos que Descartes elegeu como a pureza máxima,
os números. E se, de facto, o excesso de luz equivalesse às trevas?
A história assim contada soa estranha, e talvez mesmo
intelectualmente desonesta, mas algo poderemos aproveitar de semelhante
raciocínio.
Ao longo dos tempos, e desde que existe algo a que podemos
chamar direita política, os seus cavalos de batalha e paladinos foram mudando
ao longo dos tempos. Os capatazes e sicários de hoje são, não obstante, os
mesmos de ontem, independentemente da orientação ideológica do sistema que servem.
É o fenómeno do poder que perpassa a orgânica própria dos sistemas. As linhas de
suporte ideológico poderão ser as mais diversas: investidura divina, realismo
político, teoria do mal menor, cientismo, missão histórica da classe.
Assim, hoje, o discurso do poder fundamenta-se num determinismo
matemático de uma das diversas perspectivas da economia, num cinismo ideológico
a que alguns chamam “pós-ideológico”, embora temamos que aquilo que encobre
seja bastante antigo e conhecido de todos: o domínio, a escravatura.
Esta espraia-se numa explosão de novos processos de doutrinação
pelo poder que encontra diversas ramificações na sociedade:
- Os meios académicos
que repetem em uníssono os discursos oficiais, tomando-os como verdades
absolutas e científicas. Posições de princípio que não são nem inocentes nem
científicas, porque visam unicamente legitimar interesses bem concretos;
- O domínio da
comunicação social pela selecção adversa dos factos noticiosos, comentadores
politicamente comprometidos e papagaios do regime, debates circunscritos onde
se encontram os sempre desejáveis consensos;
- O domínio pelo
lazer: programas estupidificantes que emanam da praxis neoliberal –
competitividade, eliminação do mais fraco, alienação, brutalidade;
Quilómetros e
quilómetros de conversa fiada em torno de elementos quantificáveis - análises
estatísticas, gráficos – um vazio imenso de onde brilha ao fundo a vontade de
domínio qual luz perene e invencível, alheia à incerteza que um número pode
conter, à incomensurabilidade da existência.
Perante isto, a possibilidade de mudança deve-nos conduzir a
um processo de arqueologia linguística. Uma revolução deve principiar pelas
palavras e privilegiar a discussão das questões de fundo – os pressupostos.
A nova esquerda deverá recuperar essa velha “tradição” dos
que preferiram ser livres, mesmo quando os ventos sopravam em sentido
contrário.