segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Valas Comuns

Num momento em que o domínio ocidental escudado no politicamente correcto e na inevitabilidade da história julga a sua cavalgada triunfal de civilização, caminhamos sim, para uma longa noite que se espraiará sobre tudo e todos. A extrema individualização que as forças económicas operam (consciente ou inconscientemente) parece ter como efeito o seu extremo oposto, a perda da individualidade. O nosso nome, a nossa carga individual repetida em fórmulas simples até ao paroxismo, esvazia o ser individual e a responsabilidade de sentido. O trabalho, essa valência que tanto diz e faz pelos homens, tende cada vez mais para a simplificação das tarefas individuais, uma hiperespecialização que conduz, paradoxalmente, á fungibilidade de tudo. Ninguém e nada é insubstituível. A economia é apenas a face mais visível deste fenómeno, que se agrava seriamente nas relações sociais, pessoais e afectivas. A prova que o passado nos dá de que “tudo é possível” leva-se a perguntar se será um dia possível anular um ser humano em mais uma dessas valas do esquecimento, que Bolaño tão bem retrata na sua obra 2666.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Conselho do dia

Quando se faz algo com a hiperconsciência do processo artístico, deve-se propor a algo realmente grandioso. Caso contrário, o melhor é calar-se.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Há algo na irracionalidade e no ilogicismo que se me apresenta de forma tão avassaladora, tão pujante, tão insuportavelmente lógica e racional, que mais vale esquecer, antes que descubra verdades ainda mais perigosas que aquelas que intuí.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Capitalismo

Lloggi, esse monstro maldito que ama toda a gente. Ama os bípedes porque caminham com elegância e podem correr. Ama os pernetas pelo seu ar de águia ferida. Ama os quadrúpedes pela sua humildade. Ama os observadores pelo seu poder e os cegos pela sua sageza. Ama as mulheres pelo seu cheiro e os homens pela sua constância. Ama tudo e todos, mas não permite que o desprezem. Só dentro de si é possível amar

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Vivemos numa época de possibilidades simbólicas: uma possibilidade simbólica de violência, uma possibilidade simbólica de sexo, uma possibilidade simbólica de sucesso. Com o afastamento dos enfermos para as camas de hospital, a própria morte tornou-se uma possibilidade simbólica. Para já, a única possibilidade real parece ser o presente. Esse eterno presente…

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Senhor, tornai-nos mudos

Era um sábio. Vivia no alto de uma montanha, ainda bastante distante do vale que albergava o cheiro imundo da plebe. Entre estes homens do povo, nasceu um mito em torno do sábio que assumiu contornos religiosos, tendo o vulgo o denominado de santo – o congénere de sábio.
Todos os anos organizavam uma procissão em homenagem ao santo, na qual os jovens mais aptos da aldeia subiam a montanha para colher algumas das ervas daninhas que cresciam na soleira da sua porta. Com estas ervas, as mulheres da aldeia cozinhavam uma sopa que, segundo o povo, curava todas as maleitas – as do corpo e do espírito. Não obstante todo este fervor religioso, não se pense que o sábio recebia os seus temerários visitantes. Mantinha-se entrincheirado na sua velha casa (a que chamavam “ A Gruta”).
Não raro, gritos atrozes soavam pela montanha, fazendo eco no vale aterrador, caindo sob as cabeças descobertas dos aldeãos. Chamavam-lhe “ A Fúria do Sábio”, e dizia-se que soltava estes gritos cada vez que Deus lhe revelava uma “Verdade”. Não se sabe quantas mais “verdades” aguentaria o sábio, mas profetizava-se que, um dia, quando o seu coração estivesse já tão cheio de verdade que não suportasse mais, o sábio desceria a montanha e traria a verdade ao povo. De resto, era o silêncio.
A fama do sábio ecoou por toda a região, e em breve milhares de peregrinos das mais diversas proveniências chegaram à aldeia, na esperança de assistir em primeira-mão à revelação suprema. O dia tardava, e os peregrinos foram assentando arraiais nos arredores da aldeia, ao ponto desta se converter numa autêntica Meca. Construíram-se novas casas e arruamentos para dar resposta ao fluxo migratório. Criaram-se novos serviços e construí-se um enorme templo, cujo tecto era um pódio dourado de onde, segundo os mentores do projecto, um dia o sábio haveria de pregar as suas “verdades”.
O tempo passava, e o resignado povo não dava mostras de desistência. Muitos dos que, ainda jovens, peregrinavam a “Gruta”, eram agora velhos, já de todo demitidos da esperança de partir para o outro mundo sem acolher a “Verdade Suprema”.
Num dia de verão ouviu-se um grande tumulto na cidade. Diziam que havia chegado o dia – que um velho de nobres feições percorria a cidade e que este era, sem sombra de dúvida, o velho santo. Avisou-se o governador da cidade, que se apressou em direcção ao centro do tumulto. Um grupo de crianças, mulheres histéricas e homens de barba rija (que choravam como crianças), formavam um apertado círculo em seu torno. No centro entrevia-se uma figura esgrouviada, de faces cavadas e rugas profundas que lhe sulcavam o rosto. O seu aspecto era andrajoso, mas caminhava com uma dignidade que eclipsava o seu ar miserável – os seus olhos, particularmente, conferiam-lhe esse ar nobre. Uns olhos azuis, de um aguado que os tornava ainda mais claros, demasiado claros.
A turba e o santo foram avançando aos solavancos pela cidade fora, até que, num momento, pararam. Todos sustiveram a respiração. Era o Templo. O santo entrou no Templo e subiu ao pódio. Prostrou-se, durante uns minutos, tempo este em que o auto-designado condutor da turba, o governador, tomou poses de intérprete, interpelando o santo em tratos solenes:
“- Diz-nos tu, ó santo! Nós, os miseráveis, os que tanto caminharam para te ver, os que envelheceram só da esperança de ouvir a tua voz – os que sofrem! Queremos que nos fales! Dá-nos o teu sábio veredicto!”
Dito isto, passaram alguns minutos até que o sábio se soergueu da sua pose prostrada, contemplando com um rosto imóvel o povo. Permaneceu neste pose durante uma hora, até que esboçou um sorriso e abriu demoradamente os seus braços. Abriu a boca, e puderam ver (os que estavam mais próximos) que não tinha língua.
Temendo um motim e a desordem generalizada, o governador gritou a plenos pulmões: “NADA”!
O povo abriu e fechou as mãos em concha, e recolheu-as junto do coração. Nesse dia, todos tinham levada para os seus lares, bem juntinho ao coração, a sua porção de nada.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Senhor, tornai-nos servos

Era um povo escravo. Humilhado e ofendido na sua própria terra. Os seus opressores usavam-nos como objectos. Menos que objectos, por vezes. Detinham poder absoluto sobre a sua vida e morte.

Juntem, porém, os maiores inimigos, os maiores antagonistas dentro de uma jaula, e acabarão por descobrir afinidades. Sempre dispostos a ver no outro a sua própria sombra, acabarão por se amar. Um dia libertaram-nos.

Como graça pela sua libertação, os seus antigos opressores, agora amigos, ofereceram-lhes um pequeno pecúlio para cultivo. Cultivaram-no. Passaram a usufruir de um património próprio, embora a terra e os seus caprichos fizessem pagar os seus magros rendimentos com amargo suor.

Um dia, um visionário cientista converteu a velha charrua com que cultivavam, operante a força humana, numa potente e eficaz charrua propulsionada a força bovina. Rapidamente, a novíssima charrua deu os seus frutos. Num piscar de olhos, passaram a cobrir todas as suas necessidades e a colher excedentes.

Os mais argutos compreenderam que a charrua poderia também ser útil na criação de um novo meio de transporte, suplantando assim o esforço dos velhos cavalos.

Novíssimas charruas-móvel passaram a transportar homens e mercadorias, dia e noite. O povo enriquecia.

Uma mente ainda mais sagaz resolveu tomar partido do know-how de construção de charruas, sedimentado ao longo dos anos em práticas reiteradas e aperfeiçoadas pela inteligentia local. Tudo isto, conjugado com a mobilidade mercantil, trouxe nova e próspera fortuna ao povo. Já não era necessário trabalhar.

Os seus velhos costumes arcaicos, a dureza das relações sociais e os seus estritos códigos de honra tornaram-se obsoletos, relaxaram-se. O derrame de sangue passou a ser um crime tão hediondo como outro qualquer.

O povo, agora rico, ocioso, saudável e com pavor à violência, reparou, contudo, que apesar de tudo não era feliz. Alguns maldiziam a charrua, e toda a corrupção que havia trazido consigo. Outros suicidavam-se sob o espelhar baço e indiferente dos céus. Outros tornaram-se débeis, derreteram, de tão sobre-humanos que eram. A esmagadora maioria, porém, limitava-se a desligar todos os sensores animalescos e a fruir pacificamente toas as comodidades que a vida pós-moderna lhe proporcionava. Muitos disseram que era o fim-da-história e acenaram aos seus velhos inimigos.

Não se sabe muito bem como acabou esse povo, nem mesmo a verdadeira causa da apatia que se apoderou de todos de forma endémica, mas suspeita-se que diriam: “apenas queremos ser oprimidos”.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Nietzshe escreveu sobre uns homenzinhos frágeis escondidos em sistemas implacáveis.
Um Wittgenstein persistentemente kantiano erigiu um templo em homenagem ao Deus mecânico na voz de um sacerdote omnipotente, ditando “estados de coisas” irrefutáveis.
Russel descobriu algumas fissuras nas paredes do templo, limitando-se a desconfiar de fortalezas inexpugnáveis. Intuiu, embora muito provavelmente nunca o tivesse dito, a contingência desses templos construídos contra o Deus pagão, quando eles próprios são templos… de um Deus.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Uma sociedade assente em patologias seculares. Determinismo civilizacional. Estamos a falar da Rússia.
Aqui, a cisão entre o Estado e a sociedade é brutal. O Estado é algo de estranho, externo à sociedade. A complexidade acentua-se quando constatamos que é este o tipo de Estado que os russos reconhecem como o melhor e mais consentâneo com a especificidade do seu país. Um estado de mão pesada e terrível, numa linha de governação que pouco muda, desde Ivan a Putin.
Curiosamente, o auto-isolamento, esclerosamento e e autocracia são também o pior inimigo do povo russo. A sociedade foi sempre composta de uma massa imensa de camponeses (moujiques, depois da abolição da servidão por Alexandre II), uma minoria operária (3%, à data da Revolução de 1917) e nobreza. A extrema intolerância e redução do espaço público de discussão a zero, faz com que os grupos revolucionários se tornem ainda mais radicais e perpetua os vícios do Estado: uma máquina burocrática gigantesca, ineficaz e monocéfala. A autonomia do poder local é praticamente nula.
Desta evolução parece resultar que a Rússia, país eternamente dilacerado entre Oriente e Ocidente, absorve o pior destes dois mundos: a desumanização e crueldade orientais; de ocidente, as formas políticas despojadas do seu conteúdo e despojadas de um contexto propício (quiçá, a própria interpretação bolchevique do marxismo).
É o persistir da recusa de compromisso, a vontade de servidão, apatia, gosto pelo sofrimento.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Enfrentando uma sociedade cada vez mais opressora, as forças sociais que nos impelem inexoravelmente para um papel: uma performance, reduzem cada vez mais o significado (o que quer que isso seja) da vida. O papel do trabalho na vida de uma pessoa foi progressivamente desvirtuado após a Revolução Industrial. Porém, hoje, não se trata apenas da escravização do homem pela máquina (ideia sobejamente conhecida e explorada até à náusea pelos teóricos), mas da exploração do homem pelo número. O número, transposição abstracta da individualidade e unidade, variado em constantes binárias, precipita a existência para uma ambivalente relação entre realidade e irrealidade. Assim, será cada vez mais ténue a fronteira entre trabalho e lazer; diversão e prazer – o infinito subjectivo projectar-se-á com igual leveza no estabelecimento de laços afectivos instantâneos ou numa prestação laboral (a venda de um produto, por exemplo). O problema reside precisamente na incomensurabilidade existente entre o valor da prestação (ou performance), enquanto esforço de subectivação, e o seu resultado. Tal incomensurabilidade leva a exigências pessoais cada vez mais rigorosas - até ao delírio, assim como, no plano político e social, a um retrocesso.
A escrita é a morte da palavra, mas é, também, o começo de uma nova vida. Escrever é um exercício doloroso. É uma descida aos infernos; uma ida sem retorno ao infinito pessoal.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

“Pretende-se, em terceiro lugar, que compensando de algum modo a censura de superstição e de abandono que se pode fazer às épocas de corrupção, os costumes se fazem mais suaves no decurso destes períodos, que a crueza aí diminui notavelmente em comparação com as épocas precedentes, mais crentes, mais fortes. Não poderia já subscrever este elogio, tal como não subscrevei a acusação precedente: tudo aquilo que concedo, é que a crueldade se afirma, que as suas antigas formas repugnam ao gosto novo; mas a arte de ferir, de torturar com a palavra ou o olhar, alcançam em contrapartida, em tempo de corrupção, o seu supremo aperfeiçoamento; é só então que nascem a malignidade e o prazer de ser maldoso. As pessoas das épocas corrompidas são espirituais, caluniadoras; sabem que se pode matar dispensando a utilização do punhal e das suspresa; sabem também que se acredita em tudo o que é bem dito”.

F. Nietzsche, in A Gaia Ciência

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Chagamos a uma altura na nossa Europa, em que todas as formas de civilização, convenção e hiper-regulamentação convergem para um único fim: a vontade de extermínio; a nostalgia da guerra. Tal como em outras épocas e sistemas, a “Grelha” imposta pelos poderes dominantes é apenas um subterfúgio de uma outra vontade oculta: a vontade de extermínio. Todos são suspeitos e todos cumpridores, mas a história necessita, mais uma vez, de se alimentar das suas vítimas; a maior parte; a massa incógnita, para algum dia a celebrar num sítio ermo sob a impessoalidade do “Soldado Desconhecido”.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Tudo é poesia! Todas as formas literárias se resumem à poesia. A forma é o que dá vida própria ao poema. O poema sem forma, é como um bloco de mármore sem escultor nem cinzel, ansiando pela vida.
VII

Em alguma fase da vida atravessamos o nosso próprio rio do esquecimento. Nadamos laboriosamente e ansiamos a outra margem. Chegados a essa margem, a do esquecimento, apertamos as botas e levantamos bem alto a cabeça. Seguimos, até que alguém grita o nosso nome da outra margem. De novo sentimos o peso das roupas molhadas e o pesadelo de continuar a ser o que somos.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

É mais sincero o beijo de uma desconhecida do que o de alguém que nos amou. Só o primeiro não traiu.
IV
De repente, sinto falta de todas as histórias que ficaram por contar. De palavras, palavras usadas, séculos e séculos de significados, quilómetros de semântica. Olho em frente e vejo que só as palavras ficam. E em Deus, herói de todos os esforços julgados vãos, vejo a face de uma mulher. Choros, gritos, morte… Tudo sistematizado em volumes e compêndios. Tudo assimilado na grande marcha da civilização.
III
Às vezes penso que nada mais no futuro poderá ser belo e misterioso. O dia chegará, em que as certezas engolirão o nosso mundo, e o soldado desconhecido será tão obsoleto quanto o foi, em fim de tempo, a Cavalaria com a introdução da artilharia na arte da guerra.
Talvez a vida pela espada fosse o nosso estado natural de sempre e, desde então, mais não fizemos que cavar a vala comum da infelicidade. Talvez ainda esteja para chegar a vida mais triste de sempre.
II
Os primeiros poetas ocidentais escreviam na primeira pessoa, tal como se incluíssem na obra o seu próprio reflexo. Peso que não tinham consciência da sua grandeza, embora soubessem que escreviam para a posteridade. Imortalizavam os seus amados em sufocos homoeróticos.
I
Nos tempos em que servi, nunca fui daqueles que se deixasse passar a perna. Quando era criança desconhecia a existência de poetas, embora estivesse seguro que eles existiam. Apenas sabia que os poetas eram sinceros e exprimiam sentimentos
Em todos nós vive a ânsia da submissão a uma vontade alheia. Quem não tem, ainda, vontade de seguir a um Cristo ateu? Todos temos.
Este Cristo trocou a túnica pelo fraque e pela gravata. Anuncia o advento da chegada do Reino do Sucesso. Prega por cidades e aldeias, e os povos, amorfos, seguem-no. Um triste cortejo de penitentes. Não pretendem a salvação da alma. Já não acreditam na alma. Já não conhecem a profanação e os pecados da carne. O único pecado possível é não comer carne. Comem-se uns aos outros e choram-se. Não sabem chorar e não sabem rir. Encontram-se mas perdem-se. Perdidos em caminhos há muito traçados. Pisam e repisam a terra há muito pisada. Navegam por mares há muito navegados.
Rendemo-nos a ti, Cristo sem Cruz. Come a nossa carne e bebe o nosso sangue.
É tudo o que desejamos, por hoje…
Sempre senti uma certa curiosidade por certos momentos da vida das pessoas comuns (o que quer que isso seja). Falo de certos momentos-chave. Momentos de contrição.
Alguém, seja quem for, mesmo a pessoa mais banal, acumula os desgostos e desilusões do dia-a-dia. Quem sabe, mesmo os grandes dilemas morais filosóficos? Engole, dia-a-dia, com o gosto amargo de algo que, de resto, tenta resistir com indiferença. Criou essa indiferença como mecanismo de resistência. Construiu uma Babel na rotina e aceitou como normal toda essa violência de viver. Um dia, por algum acontecimento fortuito, um pormenor sem importância, uma futilidade, chora. Chora desalmadamente. Essas lágrimas transportam todo o peso do mundo.