Quando entrei na loja e reparei naquelas duas, tive
um movimento espontâneo de repulsa, como o hipocondríaco estremece perante a
vista de doentes. Os livros espalhavam-se como uma natureza indomada, como
ervas daninhas, em completa desordem por tudo o que era superfície, de todas as
formas e cores, aleatoriamente dispostos. Abandonasse a esperança todo o que
quisesse encontrar, no mínimo, uma ordenação temática. Os meus receios foram
confirmados pela vista assombrosa daquelas duas, mãe e filha, com toda a
certeza. A última, que por certo aparentava mais idade do que a que realmente
tinha, olhou-me de relance com uns olhos esbugalhados e zangados. Parecia
incomodada por ver entrar um cliente. Já a mãe, tive que esticar o pescoço para
a mirar. Enormes colunas de livros se erguiam na sua secretária de trabalho,
deixando apenas à vista alguns vestígios de cabelo. O que é que vendiam,
afinal? Pensei quase de imediato na Biblioteca de Babel de Borges, e como as
suas aventuras literárias lhe tomaram a vida. Parecia-me que aqueles dois seres
já tinham ultrapassado esse limiar. Eram apenas zombies que penados pairavam no
mundo dos vivos, reduzindo ao mínimo o contacto com tudo o que ainda fizesse
lembrar o seu mundo. Perguntei: «Tem o autor X…?»; respondeu de imediato:
«-Não, não tenho». Mas como podia ela saber o que quer que fosse da sua própria
biblioteca?
Após folhear alguns dos livros que se encontravam à
superfície – pois tinha receio de mexer com aquelas intricadas estruturas –
peguei numa edição tonta de um autor consagrado e levei-o à mãe para pagar. Sem
sequer me olhar e sem qualquer palavra dirigida fez-me o troco. Saí com
respeito, pois nesse momento martelavam na minha cabeça as seguintes palavras:
«Pois, companheiro, de tudo nos temos,
Do grande nada da morte que ninguém conhece
Ninguém voltou – ninguém conhece o grande silêncio –
Mas não é tudo igual, e quiçá no fim dos tempos,
Quando o sol rebentar em supernova, e a lua desistir
da sua órbitra,
Rebata no ar um pouco da magia dos antigos.».