sábado, 26 de janeiro de 2013

Reality (2012), de M. Garrone: É difícil dizer o que todos sabem.

Nápoles é uma cidade pobre. Não me compete agora analisar as causas dessa pobreza que, de resto, estará já profusamente estudada e demonstrada em obras literárias e cinematográficas. Digo-o na perspectiva de alguém que viveu na e a cidade. Nas avenidas principais de Nápoles vemos todos os dias e a qualquer hora, magotes e magotes de pessoas que caminham devagar, de olhar vazio, esses que se levantam de manhã sem saber como acabará o dia, que unem o espectáculo da sua desgraça pessoal com a degradação visível dos edifícios. É interessante, é pitoresco, mas para quem vai de passagem. Quem tem de aguentar diariamente o caos do trânsito, a insegurança causada pelo elevado número de roubos, o calor estival que nos abala até às entranhas… É difícil.
Em Nápoles, como em qualquer outro lugar do mundo onde existe escassez extrema, a necessidade faz o engenho, e os engenhosos são muitos por aquelas bandas. Encontra-se profundamente enraizada na cultura local a ideia alquimística de fazer dinheiro rápido e fácil. O roubo e o furto são apenas uma forma mais arriscada de o conseguir. Existem muitas outras à disposição: o contrabando, a contrafacção, a falsificação de moeda, apenas citando as tradicionais. Certamente que a era da internet e a cultura do empreendorismo já terão semeado outras.
A cidade explode diariamente num caos calmo, se quisermos usar um chavão. Ninguém tem pressa de ir onde quer que seja, o que contraste com a enorme quantidade de motorini e condutores tresloucados que por ali se veem. São eles quem tem a prioridade absoluta no trânsito, que espalham o terror entre os transeuntes nocturnos, que polvilham o leve cheiro a monóxido de carbono por toda a cidade. É uma canseira -  as motos, os roubos, a sensação de que nos olham de todos os lados (porque os locais facilmente detectam quem não pertence ao movimento natural das ruas), mas acabam por nos aceitar. Quando se lhes habituamos, apaparicam-nos e desfazem-se em obséquios.
Tudo isto constitui o que vulgarmente se chama máfia: um fenómeno local e especificamente italiano, enraizado nos costumes e no trato social, quando muito uma forma de organização. A máfia que conhecemos dos filmes é uma mistificação. Existe tráfico de influências, morte, droga, armas e tudo mais? Sim. Mas qual é a diferença em relação à nossa realidade, neste ponto em concreto?

Julguei necessária esta pequena introdução para falar no filme Reality, de M. Garrone, não porque a temática do filme seja indissociável de Nápoles, mas para compreender a força trágica com que as realidades se interseccionam. Basta atentar na forma como se sucedem os planos da Nápoles típica com a dos centros comerciais, do asséptico.
O Garrone de Reality é bem diferente do de Gomorra (2008). Bem ancorado nos clássicos italianos, de onde sobressai Felini, arrisca-se num tema do qual toda a gente sabe quase tudo e quase toda a gente percebe a perversidade: os Reality Shows. Mas não são apenas os Reality Shows que se vêm retratados neste filme. É toda uma revolução cultural à qual Itália e o resto do Mundo assistiram nas últimas décadas. Segundo Pasolini, esta seria a verdadeira revolução e aquela que tocaria meios e culturas nunca dantes tocados por qualquer outra. Possivelmente exagera, mas anda lá perto. Reality chega agora para nos mostrar essa possibilidade.
A personagem principal do filme, um vendedor de peixe e scamer a tempo parcial, é o típico napolitano: enérgico, apaixonado, frágil e decidido. A doença que o empurra para esse mundo, onde só existe prazer, nylons, luzes de flashes, champanhe, mulheres bonitas e dinheiro fácil, encontra a sua materialização no Big Brother. A possibilidade de um Big Brother é para ele, para a sua família e amigos, também doentes, o sinal da época das possibilidades infinitas, da irrealização do real. Tudo parece subitamente acessível à distância de um clique. Enganam-se.
A acção desenrola-se em Nápoles, por circunstâncias óbvias ao autor, mas poder-se-ia desenrolar em qualquer outra parte do planeta, porque a o Big Brother que invade um lar napolitano é o mundo da repetibilidade numa sociedade reprodutora de símbolos. Foi sempre assim?


sábado, 12 de janeiro de 2013

O meu Dentista


O meu dentista é um gajo porreiro. Talvez nem seja dentista, mas um homem de negócios que por acaso é dentista. Quando me consultou a primeira vez disse: « - O seu apelido é Silva? O senhor tem cara de árabe!». O senhor tem cara de monhé, pensei. Obliterou, cortou, secou. Falou-me em dentes de porcelana que voavam da Alemanha. E a tipa que está ao teu lado é de Leste, pensei. É um gajo porreiro, que por acaso é dentista, monhé e homem de negócios. Talvez seja mesmo um Napoleão. Napoleão disfarçado de monhé, dentista e homem de negócios.
Dito isto, e assumindo a injustiça do meu tom, já que, como veremos, falamos de um homem honesto e transparente com quem aprendi muito, façam o favor de ler este texto se quiserem descobrir porque é que ele é honesto, transparente e me ensinou muito. O marquetingue.


Este texto, na realidade, não é sobre o meu dentista, ou sê-lo-á apenas por antonomásia. Este texto é sobre transparência, e se me lembrei imediatamente do meu dentista é porque ele tem um consultório transparente, com diversas salas, todas em vidro, e as pessoas que passam na rua veem-no trabalhar e veem-nos ali deitados de boca escarranchada. O homem tem olho para o negócio e já construiu um império de consultórios em Lisboa. Direi mesmo que se a morte o colher inesperadamente, como tantas vezes faz aos napoleões deste mundo, será extremamente injusto. Extremamente injusto. O senhor tem cara de árabe. O senhor tem cara de monhé. E mais digo que aos napoleões deste mundo tudo é permito, inclusive dizimar nações inteiras. O meu Napoleão apenas me dizimou o salário, quase sem explicar o que fazia. Apenas o vi dar ordens à sua assistente de Leste. Aliás, naquele consultório todas as assistentes são de Leste, altas, loiras, giraças. Pronunciam um português à boquinha fechada e fazem-me lembrar as sedutoras de 3ª do Alphaville – amorfas, iguais, assépticas.
Na realidade, este artigo é sobre assepsia, mas apenas porque a rotunda que faz esquina com o consultório do meu dentista – a Rotunda da Placa Dentária – chamo-lhe assim porque tem nada menos que uma placa dentária gigante lá plantada no meio, é extremamente asséptica.
Mas se este artigo versasse sobre o nobre assunto das rotundas, bem poderia falar-vos sobre as rotundas de V.N. Famalicão, a minha terra natal.
O presidente da câmara, o homem mais rico da região, mandou construir uma rotunda em frente ao Jumbo onde se encontra um trabalho escultórico de homenagem ao empresário. Não a um empresário em específico, mas ao “Empresário”. São duas colunas, ou não são bem colunas mas torres, uma asséptica, outra enferrujada. Numa vemos um senhor vestido de empresário a desafiar as leis da gravidade subindo-a na vertical. Em ambas vemos dois bonecos postos lá no cimo, que simbolizam empresários e estão no topo. São os napoleões.
Se seguirmos pela rotunda do Jumbo em direcção ao centro da cidade, passamos na rotunda Bernardino Machado, ilustre Presidente da República na primeira dessa nome, e natural do concelho. Encontra-se colocado num vasto pódio, bem à esquerda. Porque era um homem de esquerda, claro está. Dizem as más-línguas que quando o actual presidente da câmara morrer, colocarão a sua estátua à direita desse pódio.
No final dessa mesma avenida, encontramos a rotunda da Paz, também conhecida por “Rotunda das Pombinhas”, não apenas porque tem umas pombinhas lá postas, que simbolizam a paz, mas também porque esse era o local de frequência das senhoras da vida.
Entre a rotunda Bernardino Machado e Rotunda da Paz, surgiu uma nova que se chama “Rotunda Rotary Club”. Rotundas. Aos napoleões tudo é permitido.
E as meninas russas que assistem o meu dentista, aperaltam-se todas para o dia de trabalho. Pudera… Não são apenas assistentes, mas também actrizes, tal como as meninas professoras do Wall Street Institut, em Lisboa. Também aí é tudo em vidro, transparente, asséptico. Estamos na época do Reality Show. Todos somos potenciais actores.
Aos napoleões tudo é permitido.