Nápoles é uma cidade pobre. Não me compete agora
analisar as causas dessa pobreza que, de resto, estará já profusamente estudada
e demonstrada em obras literárias e cinematográficas. Digo-o na perspectiva de
alguém que viveu na e a cidade. Nas avenidas principais de
Nápoles vemos todos os dias e a qualquer hora, magotes e magotes de pessoas que
caminham devagar, de olhar vazio, esses que se levantam de manhã sem saber como
acabará o dia, que unem o espectáculo da sua desgraça pessoal com a degradação
visível dos edifícios. É interessante, é pitoresco, mas para quem vai de
passagem. Quem tem de aguentar diariamente o caos do trânsito, a insegurança causada
pelo elevado número de roubos, o calor estival que nos abala até às entranhas…
É difícil.
Em Nápoles, como em qualquer outro lugar do mundo
onde existe escassez extrema, a necessidade faz o engenho, e os engenhosos são
muitos por aquelas bandas. Encontra-se profundamente enraizada na cultura local
a ideia alquimística de fazer dinheiro rápido e fácil. O roubo e o furto são
apenas uma forma mais arriscada de o conseguir. Existem muitas outras à
disposição: o contrabando, a contrafacção, a falsificação de moeda, apenas
citando as tradicionais. Certamente que a era da internet e a cultura do
empreendorismo já terão semeado outras.
A cidade explode diariamente num caos calmo, se
quisermos usar um chavão. Ninguém tem pressa de ir onde quer que seja, o que contraste com a enorme quantidade
de motorini e condutores tresloucados
que por ali se veem. São eles quem tem a prioridade absoluta no trânsito, que
espalham o terror entre os transeuntes nocturnos, que polvilham o leve cheiro a
monóxido de carbono por toda a cidade. É uma canseira - as motos, os roubos, a sensação de que nos
olham de todos os lados (porque os locais facilmente detectam quem não pertence
ao movimento natural das ruas), mas acabam por nos aceitar. Quando se lhes
habituamos, apaparicam-nos e desfazem-se em obséquios.
Tudo isto constitui o que vulgarmente se chama
máfia: um fenómeno local e especificamente italiano, enraizado nos costumes e
no trato social, quando muito uma forma de organização. A máfia que conhecemos
dos filmes é uma mistificação. Existe tráfico de influências, morte, droga, armas
e tudo mais? Sim. Mas qual é a diferença em relação à nossa realidade, neste
ponto em concreto?
Julguei necessária esta pequena introdução para
falar no filme Reality, de M. Garrone, não porque a temática do filme seja
indissociável de Nápoles, mas para compreender a força trágica com que as realidades
se interseccionam. Basta atentar na forma como se sucedem os planos da Nápoles
típica com a dos centros comerciais, do asséptico.
O Garrone de Reality
é bem diferente do de Gomorra (2008).
Bem ancorado nos clássicos italianos, de onde sobressai Felini, arrisca-se num
tema do qual toda a gente sabe quase tudo e quase toda a gente percebe a
perversidade: os Reality Shows. Mas não são apenas os Reality Shows que se vêm
retratados neste filme. É toda uma revolução cultural à qual Itália e o resto
do Mundo assistiram nas últimas décadas. Segundo Pasolini, esta seria a
verdadeira revolução e aquela que tocaria meios e culturas nunca dantes tocados
por qualquer outra. Possivelmente exagera, mas anda lá perto. Reality chega agora para nos mostrar
essa possibilidade.
A personagem principal do filme, um vendedor de
peixe e scamer a tempo parcial, é o
típico napolitano: enérgico, apaixonado, frágil e decidido. A doença que o
empurra para esse mundo, onde só existe prazer, nylons, luzes de flashes,
champanhe, mulheres bonitas e dinheiro fácil, encontra a sua materialização no Big Brother. A possibilidade de um Big Brother é para ele, para a sua
família e amigos, também doentes, o sinal da época das possibilidades
infinitas, da irrealização do real. Tudo parece subitamente acessível à
distância de um clique. Enganam-se.
A acção desenrola-se em Nápoles, por circunstâncias
óbvias ao autor, mas poder-se-ia desenrolar em qualquer outra parte do planeta,
porque a o Big Brother que invade um
lar napolitano é o mundo da repetibilidade numa sociedade reprodutora de símbolos.
Foi sempre assim?