I
Era manhã quando me acerquei de uma banca de livros.
Enquanto via de relance as capas e preços, um pregão tremendo e artificial soou
em toda a estação:
- Ó freguês,
ó freguês, é comprar, é comprar! É p’ó menino e p´á menina, compra compal que
tem vitamina! Por apenas 50 cêntimos!
Uma senhora dos seus trinta e poucos em frente de
uma banca igual àquelas em que nos tentam vender cartões de felicidade,
apregoava o seu produto nas quadras tradicionais da fala popular.
Reparando que esboçava um sorriso, o senhor da banca
de livros acercou-se de mim e explodiu:
- Está a
ouvir isto?! Isto é todo o dia, de manhã à noite! A primeira hora ainda tem
piada, mas ouvir isto o dia inteiro é cá uma dose…! E olhe que ela não faz isto
porque quer! Fá-lo porque é obrigada! Está a ver aquele macaquito metido na
guarita? É o chefe dela.
Olhei na direcção que o senhor me apontou e de facto
estava lá um homenzito enfiado dentro de uma garrafa gigante de compal.
- Isto é todo o dia! A voz do raio desta mulher ecoa
aqui em todo o lado. Já falei aqui com os vizinhos e queixam-se do mesmo. Por
50 cêntimos! Inclusive, já falei ali com o macaquito, que me confirmou que era
assim mesmo, que a direcção mandava que assim fosse. Disse-me que tinha muito
gosto nesta empregada e tomara ele que todas fossem assim!
Ao ver a minha expressão de repugnância, o senhor
continuou:
- O senhor nunca trabalhou em vendas? Não!? Olhe que
se aprende muito! Por exemplo, o senhor se vai ali à esquina comprar uma televisão
compra-a pelo preço marcado; eu compro pelo preço de revenda. Sei negociar
graças à minha experiência na área comercial. A gente ganha tacto para a vida!
Mas isto aqui não é nada! Para começar, esta mulher tem objectivos para
cumprir, mas pode ter a certeza absoluta que não tem voz daqui a uns anos. É
uma barbaridade! E isto se a moda pega, qualquer dia obrigam-me a mim a andar
para aqui aos berros a apregoar os livros. Isto não tem jeito nenhum! Prefiro
estar em tendas de feira com 40 graus, como já aconteceu. Olhe, ainda há pouco
tempo me mudaram o local de trabalho para me pagar menos, mas acredite que não
me importo enquanto não me obrigarem a uma coisa destas. Porque isto continua,
continua e não há quem lhe ponha fim! É uma máquina infernal! E vai lá a gente
deitar um filho ao mundo para alimentar este monstro…
O senhor continuava a narrar a sua indignação,
quando me distraí a olhar para uns livros de excelente edição a preços
sacrificadíssimos. Logo ao lado, saltavam em letras gordas edições novas de
sucessos recentes: “Como ser Espontâneo em Dez Lições”, “O Peso do Estado
Social em Portugal”, “Como se Tornar Competitivo”, “A Criação de Coelhos Moderna”.
Um pouco lado, em capas cinza gastas, Marx sorria-me de esguelha como não o
fazia há bastantes anos. Um ou outro clássico russo saltava de pilha em pilha.
Comprei duas edições baratas e despedi-me do homem.
II
Na sede da empresa X, toda a gente se levanta cedo.
Só existe um turno; começa de manhã bem cedo e é religiosamente respeitado por
miúdos e graúdos.
O edifício, de construção moderna, foi erigido na
forma de V de vitória. É um prodígio da racionalidade: todos os espaços estão escrupulosamente
pensados e aproveitados. Existem torniquetes, paredes de vidro e regras a
respeitar. Tudo o que se faz é vigiado por câmaras e registado para memória
futura. Tudo devidamente monitorizado.
Nos últimos tempos têm-se vivido alguns momentos de
tensão. As pessoas parecem um pouco atarantadas e, devo dizê-lo, desmotivadas.
A quebra das vendas preocupa toda a gente, desde o maior acionista ao mais simples
trabalhador. Mas nem tudo é razão para desesperar. Depois de uma série de brainstormings, refreshes, uploads, um
jovem licenciado em marquetingue teve uma ideia genial: aproveitar o melhor do
tradicional para as vendas, aquilo do que todos, desde o mais pequeno ao mais
velho, temos referências. Personalizar e aproximar, pelo coração, o produto do
consumidor. Dizem que está a ter sucesso e já se sentem alguns efeitos.
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