sábado, 6 de outubro de 2012

Afirma Pereira



“Afirma Pereira”, obra de António Tabucchi, escritor recentemente falecido com grandes ligações à cultura portuguesa.
Pereira é um velho jornalista português que vive na sociedade lisboeta dos anos 30, anos da ascensão do salazarismo, da afirmação dos diversos totalitarismos na Europa, da Guerra Civil Espanhola.
Este herói improvável é o responsável pela página cultural de um jornal da época o qual, embora não assumidamente, mantém relações privilegiadas com o regime.
Pereira é aquilo a que chamamos um “apolítico”, condição à qual a secção cultural de que está encarregue parece adequar-se perfeitamente. Assim permanece longe de qualquer suspeita, até que os problemas batem literalmente à sua porta. Vê-se compelido, antes de mais pelo seu carácter bondoso, a oferecer guarida a um jovem revolucionário com ligações à então beligerante República Espanhola. O jovem, inicialmente contactado por Pereira para se ocupar da página necrológica, por muito que tente, não consegue senão escrever sobre grandes revolucionários, para grande aflição do seu empregador.
Chegados a este ponto, a obra transporta-nos para um universo claramente organizado entre o “nós” e o “outros”, isto é, os que se mantém passivos perante o crescente acosso das autoridades e os que estão dispostos a abdicar de tudo, nomeadamente da sua segurança pessoal, para inverter a ordem das coisas. Dito isto, parece que estamos perante uma banalidade ou lugar-comum, e é bem possível que o seja, mas afigura-se-nos que na realidade que hoje vivemos urge dizer banalidades, ou pelo menos muitas das que até hoje mantiveram esse estatuto.
Porém, esse “nós” e esse “outros” vai muito para além do sentido militante que estes termos possam conter. Não são apenas as pessoas ligadas ao poder aqueles a que podemos chamar salazaristas, nem a o salazarismo se confunde apenas com a pessoa de Salazar, mas é toda uma visão do mundo e da vida que lhe vai implicada, quer pelas pessoas politicamente conscientes, quer por todos os outros que reproduzem no seu comportamento individual os ditames do poder instituído. O mesmo se passa com aqueles que mais ou menos voluntariamente se transformam em revolucionários, porque a suas ideias políticas não são apenas políticas (no sentido de responsabilidade pública), mas estão entranhadas no mais ínfimo pormenor das suas vidas.
Esta é a grandeza da obra que retrata (quiçá inconscientemente) o crescente antagonismo em que os seus intervenientes agem como uma espécie de marionetas nas mãos de uma força incógnita.
Por isto a obra parece reconhecer como óbvio o que hoje é tudo menos óbvio: não existe separação entre responsabilidade pública e individual, e os discursos encriptados dos agentes de poder instituído são, afinal, reveladores de verdadeiras escolhas políticas.
Assim, o Estado bicéfalo que herdamos desta democracia, onde se asseguram direitos, liberdades e garantias, mas se relegam as iniquidades do sistema para a esfera individual, mais não é do que a suprema falácia de um sistema empenhado em manter o status quo. A liberdade nunca é uma verdadeira liberdade se os chamados direitos económicos, sociais e culturais (que até as vozes mais insuspeitas consideram hipotecáveis em tempos de crise) forem continuamente desprezados. A “Empresa”, ao que parece, a nova célula fundamental da sociedade, é o feudo onde se permitem todos os atropelos aos direitos fundamentais em nome de uma espécie de soberania própria. Aqui se reconhece que a realidade dos sindicalizados restringe-se aos poucos sectores onde os trabalhadores têm poder negocial, e que, portanto, se encontram organizados.
Para finalizar, uma advertência: a inclusão de todos os aspectos da vida de um ser humano na esfera política comporta também perigos. Por isso, tal narrativa não se pode assemelhar a um saco sem fundo onde tudo se pode arrumar.

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