“Afirma Pereira”, obra de António Tabucchi, escritor
recentemente falecido com grandes ligações à cultura portuguesa.
Pereira é um velho jornalista português que vive na
sociedade lisboeta dos anos 30, anos da ascensão do salazarismo, da afirmação
dos diversos totalitarismos na Europa, da Guerra Civil Espanhola.
Este herói improvável é o responsável pela página
cultural de um jornal da época o qual, embora não assumidamente, mantém
relações privilegiadas com o regime.
Pereira é aquilo a que chamamos um “apolítico”, condição
à qual a secção cultural de que está encarregue parece adequar-se perfeitamente.
Assim permanece longe de qualquer suspeita, até que os problemas batem
literalmente à sua porta. Vê-se compelido, antes de mais pelo seu carácter
bondoso, a oferecer guarida a um jovem revolucionário com ligações à então
beligerante República Espanhola. O jovem, inicialmente contactado por Pereira
para se ocupar da página necrológica, por muito que tente, não consegue senão
escrever sobre grandes revolucionários, para grande aflição do seu empregador.
Chegados a este ponto, a obra transporta-nos para um
universo claramente organizado entre o “nós” e o “outros”, isto é, os que se
mantém passivos perante o crescente acosso das autoridades e os que estão
dispostos a abdicar de tudo, nomeadamente da sua segurança pessoal, para
inverter a ordem das coisas. Dito isto, parece que estamos perante uma
banalidade ou lugar-comum, e é bem possível que o seja, mas afigura-se-nos que
na realidade que hoje vivemos urge dizer banalidades, ou pelo menos muitas das
que até hoje mantiveram esse estatuto.
Porém, esse “nós” e esse “outros” vai muito para
além do sentido militante que estes termos possam conter. Não são apenas as
pessoas ligadas ao poder aqueles a que podemos chamar salazaristas, nem a o
salazarismo se confunde apenas com a pessoa de Salazar, mas é toda uma visão do
mundo e da vida que lhe vai implicada, quer pelas pessoas politicamente conscientes,
quer por todos os outros que reproduzem no seu comportamento individual os
ditames do poder instituído. O mesmo se passa com aqueles que mais ou menos
voluntariamente se transformam em revolucionários, porque a suas ideias
políticas não são apenas políticas (no sentido de responsabilidade pública),
mas estão entranhadas no mais ínfimo pormenor das suas vidas.
Esta é a grandeza da obra que retrata (quiçá
inconscientemente) o crescente antagonismo em que os seus intervenientes agem
como uma espécie de marionetas nas mãos de uma força incógnita.
Por isto a obra parece reconhecer como óbvio o que
hoje é tudo menos óbvio: não existe separação entre responsabilidade pública e
individual, e os discursos encriptados dos agentes de poder instituído são,
afinal, reveladores de verdadeiras escolhas políticas.
Assim, o Estado bicéfalo que herdamos desta
democracia, onde se asseguram direitos, liberdades e garantias, mas se relegam
as iniquidades do sistema para a esfera individual, mais não é do que a suprema
falácia de um sistema empenhado em manter o status
quo. A liberdade nunca é uma verdadeira liberdade se os chamados direitos
económicos, sociais e culturais (que até as vozes mais insuspeitas consideram hipotecáveis
em tempos de crise) forem continuamente desprezados. A “Empresa”, ao que
parece, a nova célula fundamental da sociedade, é o feudo onde se permitem
todos os atropelos aos direitos fundamentais em nome de uma espécie de
soberania própria. Aqui se reconhece que a realidade dos sindicalizados
restringe-se aos poucos sectores onde os trabalhadores têm poder negocial, e que,
portanto, se encontram organizados.
Para finalizar, uma advertência: a inclusão de todos
os aspectos da vida de um ser humano na esfera política comporta também perigos.
Por isso, tal narrativa não se pode assemelhar a um saco sem fundo onde tudo se
pode arrumar.
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