terça-feira, 2 de julho de 2013

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Quando entrei na loja e reparei naquelas duas, tive um movimento espontâneo de repulsa, como o hipocondríaco estremece perante a vista de doentes. Os livros espalhavam-se como uma natureza indomada, como ervas daninhas, em completa desordem por tudo o que era superfície, de todas as formas e cores, aleatoriamente dispostos. Abandonasse a esperança todo o que quisesse encontrar, no mínimo, uma ordenação temática. Os meus receios foram confirmados pela vista assombrosa daquelas duas, mãe e filha, com toda a certeza. A última, que por certo aparentava mais idade do que a que realmente tinha, olhou-me de relance com uns olhos esbugalhados e zangados. Parecia incomodada por ver entrar um cliente. Já a mãe, tive que esticar o pescoço para a mirar. Enormes colunas de livros se erguiam na sua secretária de trabalho, deixando apenas à vista alguns vestígios de cabelo. O que é que vendiam, afinal? Pensei quase de imediato na Biblioteca de Babel de Borges, e como as suas aventuras literárias lhe tomaram a vida. Parecia-me que aqueles dois seres já tinham ultrapassado esse limiar. Eram apenas zombies que penados pairavam no mundo dos vivos, reduzindo ao mínimo o contacto com tudo o que ainda fizesse lembrar o seu mundo. Perguntei: «Tem o autor X…?»; respondeu de imediato: «-Não, não tenho». Mas como podia ela saber o que quer que fosse da sua própria biblioteca?
Após folhear alguns dos livros que se encontravam à superfície – pois tinha receio de mexer com aquelas intricadas estruturas – peguei numa edição tonta de um autor consagrado e levei-o à mãe para pagar. Sem sequer me olhar e sem qualquer palavra dirigida fez-me o troco. Saí com respeito, pois nesse momento martelavam na minha cabeça as seguintes palavras:


«Pois, companheiro, de tudo nos temos,

Do grande nada da morte que ninguém conhece

Ninguém voltou – ninguém conhece o grande silêncio –

Mas não é tudo igual, e quiçá no fim dos tempos,

Quando o sol rebentar em supernova, e a lua desistir da sua órbitra,

Rebata no ar um pouco da magia dos antigos.».

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O Pregão do Metro – Uma História Contada ao Contrário



I
Era manhã quando me acerquei de uma banca de livros. Enquanto via de relance as capas e preços, um pregão tremendo e artificial soou em toda a estação:
 - Ó freguês, ó freguês, é comprar, é comprar! É p’ó menino e p´á menina, compra compal que tem vitamina! Por apenas 50 cêntimos!
Uma senhora dos seus trinta e poucos em frente de uma banca igual àquelas em que nos tentam vender cartões de felicidade, apregoava o seu produto nas quadras tradicionais da fala popular.
Reparando que esboçava um sorriso, o senhor da banca de livros acercou-se de mim e explodiu:
 - Está a ouvir isto?! Isto é todo o dia, de manhã à noite! A primeira hora ainda tem piada, mas ouvir isto o dia inteiro é cá uma dose…! E olhe que ela não faz isto porque quer! Fá-lo porque é obrigada! Está a ver aquele macaquito metido na guarita? É o chefe dela.
Olhei na direcção que o senhor me apontou e de facto estava lá um homenzito enfiado dentro de uma garrafa gigante de compal.
- Isto é todo o dia! A voz do raio desta mulher ecoa aqui em todo o lado. Já falei aqui com os vizinhos e queixam-se do mesmo. Por 50 cêntimos! Inclusive, já falei ali com o macaquito, que me confirmou que era assim mesmo, que a direcção mandava que assim fosse. Disse-me que tinha muito gosto nesta empregada e tomara ele que todas fossem assim!
Ao ver a minha expressão de repugnância, o senhor continuou:
- O senhor nunca trabalhou em vendas? Não!? Olhe que se aprende muito! Por exemplo, o senhor se vai ali à esquina comprar uma televisão compra-a pelo preço marcado; eu compro pelo preço de revenda. Sei negociar graças à minha experiência na área comercial. A gente ganha tacto para a vida! Mas isto aqui não é nada! Para começar, esta mulher tem objectivos para cumprir, mas pode ter a certeza absoluta que não tem voz daqui a uns anos. É uma barbaridade! E isto se a moda pega, qualquer dia obrigam-me a mim a andar para aqui aos berros a apregoar os livros. Isto não tem jeito nenhum! Prefiro estar em tendas de feira com 40 graus, como já aconteceu. Olhe, ainda há pouco tempo me mudaram o local de trabalho para me pagar menos, mas acredite que não me importo enquanto não me obrigarem a uma coisa destas. Porque isto continua, continua e não há quem lhe ponha fim! É uma máquina infernal! E vai lá a gente deitar um filho ao mundo para alimentar este monstro…
O senhor continuava a narrar a sua indignação, quando me distraí a olhar para uns livros de excelente edição a preços sacrificadíssimos. Logo ao lado, saltavam em letras gordas edições novas de sucessos recentes: “Como ser Espontâneo em Dez Lições”, “O Peso do Estado Social em Portugal”, “Como se Tornar Competitivo”, “A Criação de Coelhos Moderna”. Um pouco lado, em capas cinza gastas, Marx sorria-me de esguelha como não o fazia há bastantes anos. Um ou outro clássico russo saltava de pilha em pilha. Comprei duas edições baratas e despedi-me do homem.

II
Na sede da empresa X, toda a gente se levanta cedo. Só existe um turno; começa de manhã bem cedo e é religiosamente respeitado por miúdos e graúdos.
O edifício, de construção moderna, foi erigido na forma de V de vitória. É um prodígio da racionalidade: todos os espaços estão escrupulosamente pensados e aproveitados. Existem torniquetes, paredes de vidro e regras a respeitar. Tudo o que se faz é vigiado por câmaras e registado para memória futura. Tudo devidamente monitorizado.
Nos últimos tempos têm-se vivido alguns momentos de tensão. As pessoas parecem um pouco atarantadas e, devo dizê-lo, desmotivadas. A quebra das vendas preocupa toda a gente, desde o maior acionista ao mais simples trabalhador. Mas nem tudo é razão para desesperar. Depois de uma série de brainstormings, refreshes, uploads, um jovem licenciado em marquetingue teve uma ideia genial: aproveitar o melhor do tradicional para as vendas, aquilo do que todos, desde o mais pequeno ao mais velho, temos referências. Personalizar e aproximar, pelo coração, o produto do consumidor. Dizem que está a ter sucesso e já se sentem alguns efeitos.  

sábado, 26 de janeiro de 2013

Reality (2012), de M. Garrone: É difícil dizer o que todos sabem.

Nápoles é uma cidade pobre. Não me compete agora analisar as causas dessa pobreza que, de resto, estará já profusamente estudada e demonstrada em obras literárias e cinematográficas. Digo-o na perspectiva de alguém que viveu na e a cidade. Nas avenidas principais de Nápoles vemos todos os dias e a qualquer hora, magotes e magotes de pessoas que caminham devagar, de olhar vazio, esses que se levantam de manhã sem saber como acabará o dia, que unem o espectáculo da sua desgraça pessoal com a degradação visível dos edifícios. É interessante, é pitoresco, mas para quem vai de passagem. Quem tem de aguentar diariamente o caos do trânsito, a insegurança causada pelo elevado número de roubos, o calor estival que nos abala até às entranhas… É difícil.
Em Nápoles, como em qualquer outro lugar do mundo onde existe escassez extrema, a necessidade faz o engenho, e os engenhosos são muitos por aquelas bandas. Encontra-se profundamente enraizada na cultura local a ideia alquimística de fazer dinheiro rápido e fácil. O roubo e o furto são apenas uma forma mais arriscada de o conseguir. Existem muitas outras à disposição: o contrabando, a contrafacção, a falsificação de moeda, apenas citando as tradicionais. Certamente que a era da internet e a cultura do empreendorismo já terão semeado outras.
A cidade explode diariamente num caos calmo, se quisermos usar um chavão. Ninguém tem pressa de ir onde quer que seja, o que contraste com a enorme quantidade de motorini e condutores tresloucados que por ali se veem. São eles quem tem a prioridade absoluta no trânsito, que espalham o terror entre os transeuntes nocturnos, que polvilham o leve cheiro a monóxido de carbono por toda a cidade. É uma canseira -  as motos, os roubos, a sensação de que nos olham de todos os lados (porque os locais facilmente detectam quem não pertence ao movimento natural das ruas), mas acabam por nos aceitar. Quando se lhes habituamos, apaparicam-nos e desfazem-se em obséquios.
Tudo isto constitui o que vulgarmente se chama máfia: um fenómeno local e especificamente italiano, enraizado nos costumes e no trato social, quando muito uma forma de organização. A máfia que conhecemos dos filmes é uma mistificação. Existe tráfico de influências, morte, droga, armas e tudo mais? Sim. Mas qual é a diferença em relação à nossa realidade, neste ponto em concreto?

Julguei necessária esta pequena introdução para falar no filme Reality, de M. Garrone, não porque a temática do filme seja indissociável de Nápoles, mas para compreender a força trágica com que as realidades se interseccionam. Basta atentar na forma como se sucedem os planos da Nápoles típica com a dos centros comerciais, do asséptico.
O Garrone de Reality é bem diferente do de Gomorra (2008). Bem ancorado nos clássicos italianos, de onde sobressai Felini, arrisca-se num tema do qual toda a gente sabe quase tudo e quase toda a gente percebe a perversidade: os Reality Shows. Mas não são apenas os Reality Shows que se vêm retratados neste filme. É toda uma revolução cultural à qual Itália e o resto do Mundo assistiram nas últimas décadas. Segundo Pasolini, esta seria a verdadeira revolução e aquela que tocaria meios e culturas nunca dantes tocados por qualquer outra. Possivelmente exagera, mas anda lá perto. Reality chega agora para nos mostrar essa possibilidade.
A personagem principal do filme, um vendedor de peixe e scamer a tempo parcial, é o típico napolitano: enérgico, apaixonado, frágil e decidido. A doença que o empurra para esse mundo, onde só existe prazer, nylons, luzes de flashes, champanhe, mulheres bonitas e dinheiro fácil, encontra a sua materialização no Big Brother. A possibilidade de um Big Brother é para ele, para a sua família e amigos, também doentes, o sinal da época das possibilidades infinitas, da irrealização do real. Tudo parece subitamente acessível à distância de um clique. Enganam-se.
A acção desenrola-se em Nápoles, por circunstâncias óbvias ao autor, mas poder-se-ia desenrolar em qualquer outra parte do planeta, porque a o Big Brother que invade um lar napolitano é o mundo da repetibilidade numa sociedade reprodutora de símbolos. Foi sempre assim?


sábado, 12 de janeiro de 2013

O meu Dentista


O meu dentista é um gajo porreiro. Talvez nem seja dentista, mas um homem de negócios que por acaso é dentista. Quando me consultou a primeira vez disse: « - O seu apelido é Silva? O senhor tem cara de árabe!». O senhor tem cara de monhé, pensei. Obliterou, cortou, secou. Falou-me em dentes de porcelana que voavam da Alemanha. E a tipa que está ao teu lado é de Leste, pensei. É um gajo porreiro, que por acaso é dentista, monhé e homem de negócios. Talvez seja mesmo um Napoleão. Napoleão disfarçado de monhé, dentista e homem de negócios.
Dito isto, e assumindo a injustiça do meu tom, já que, como veremos, falamos de um homem honesto e transparente com quem aprendi muito, façam o favor de ler este texto se quiserem descobrir porque é que ele é honesto, transparente e me ensinou muito. O marquetingue.


Este texto, na realidade, não é sobre o meu dentista, ou sê-lo-á apenas por antonomásia. Este texto é sobre transparência, e se me lembrei imediatamente do meu dentista é porque ele tem um consultório transparente, com diversas salas, todas em vidro, e as pessoas que passam na rua veem-no trabalhar e veem-nos ali deitados de boca escarranchada. O homem tem olho para o negócio e já construiu um império de consultórios em Lisboa. Direi mesmo que se a morte o colher inesperadamente, como tantas vezes faz aos napoleões deste mundo, será extremamente injusto. Extremamente injusto. O senhor tem cara de árabe. O senhor tem cara de monhé. E mais digo que aos napoleões deste mundo tudo é permito, inclusive dizimar nações inteiras. O meu Napoleão apenas me dizimou o salário, quase sem explicar o que fazia. Apenas o vi dar ordens à sua assistente de Leste. Aliás, naquele consultório todas as assistentes são de Leste, altas, loiras, giraças. Pronunciam um português à boquinha fechada e fazem-me lembrar as sedutoras de 3ª do Alphaville – amorfas, iguais, assépticas.
Na realidade, este artigo é sobre assepsia, mas apenas porque a rotunda que faz esquina com o consultório do meu dentista – a Rotunda da Placa Dentária – chamo-lhe assim porque tem nada menos que uma placa dentária gigante lá plantada no meio, é extremamente asséptica.
Mas se este artigo versasse sobre o nobre assunto das rotundas, bem poderia falar-vos sobre as rotundas de V.N. Famalicão, a minha terra natal.
O presidente da câmara, o homem mais rico da região, mandou construir uma rotunda em frente ao Jumbo onde se encontra um trabalho escultórico de homenagem ao empresário. Não a um empresário em específico, mas ao “Empresário”. São duas colunas, ou não são bem colunas mas torres, uma asséptica, outra enferrujada. Numa vemos um senhor vestido de empresário a desafiar as leis da gravidade subindo-a na vertical. Em ambas vemos dois bonecos postos lá no cimo, que simbolizam empresários e estão no topo. São os napoleões.
Se seguirmos pela rotunda do Jumbo em direcção ao centro da cidade, passamos na rotunda Bernardino Machado, ilustre Presidente da República na primeira dessa nome, e natural do concelho. Encontra-se colocado num vasto pódio, bem à esquerda. Porque era um homem de esquerda, claro está. Dizem as más-línguas que quando o actual presidente da câmara morrer, colocarão a sua estátua à direita desse pódio.
No final dessa mesma avenida, encontramos a rotunda da Paz, também conhecida por “Rotunda das Pombinhas”, não apenas porque tem umas pombinhas lá postas, que simbolizam a paz, mas também porque esse era o local de frequência das senhoras da vida.
Entre a rotunda Bernardino Machado e Rotunda da Paz, surgiu uma nova que se chama “Rotunda Rotary Club”. Rotundas. Aos napoleões tudo é permitido.
E as meninas russas que assistem o meu dentista, aperaltam-se todas para o dia de trabalho. Pudera… Não são apenas assistentes, mas também actrizes, tal como as meninas professoras do Wall Street Institut, em Lisboa. Também aí é tudo em vidro, transparente, asséptico. Estamos na época do Reality Show. Todos somos potenciais actores.
Aos napoleões tudo é permitido.