Era um sábio. Vivia no alto de uma montanha, ainda bastante distante do vale que albergava o cheiro imundo da plebe. Entre estes homens do povo, nasceu um mito em torno do sábio que assumiu contornos religiosos, tendo o vulgo o denominado de santo – o congénere de sábio.
Todos os anos organizavam uma procissão em homenagem ao santo, na qual os jovens mais aptos da aldeia subiam a montanha para colher algumas das ervas daninhas que cresciam na soleira da sua porta. Com estas ervas, as mulheres da aldeia cozinhavam uma sopa que, segundo o povo, curava todas as maleitas – as do corpo e do espírito. Não obstante todo este fervor religioso, não se pense que o sábio recebia os seus temerários visitantes. Mantinha-se entrincheirado na sua velha casa (a que chamavam “ A Gruta”).
Não raro, gritos atrozes soavam pela montanha, fazendo eco no vale aterrador, caindo sob as cabeças descobertas dos aldeãos. Chamavam-lhe “ A Fúria do Sábio”, e dizia-se que soltava estes gritos cada vez que Deus lhe revelava uma “Verdade”. Não se sabe quantas mais “verdades” aguentaria o sábio, mas profetizava-se que, um dia, quando o seu coração estivesse já tão cheio de verdade que não suportasse mais, o sábio desceria a montanha e traria a verdade ao povo. De resto, era o silêncio.
A fama do sábio ecoou por toda a região, e em breve milhares de peregrinos das mais diversas proveniências chegaram à aldeia, na esperança de assistir em primeira-mão à revelação suprema. O dia tardava, e os peregrinos foram assentando arraiais nos arredores da aldeia, ao ponto desta se converter numa autêntica Meca. Construíram-se novas casas e arruamentos para dar resposta ao fluxo migratório. Criaram-se novos serviços e construí-se um enorme templo, cujo tecto era um pódio dourado de onde, segundo os mentores do projecto, um dia o sábio haveria de pregar as suas “verdades”.
O tempo passava, e o resignado povo não dava mostras de desistência. Muitos dos que, ainda jovens, peregrinavam a “Gruta”, eram agora velhos, já de todo demitidos da esperança de partir para o outro mundo sem acolher a “Verdade Suprema”.
Num dia de verão ouviu-se um grande tumulto na cidade. Diziam que havia chegado o dia – que um velho de nobres feições percorria a cidade e que este era, sem sombra de dúvida, o velho santo. Avisou-se o governador da cidade, que se apressou em direcção ao centro do tumulto. Um grupo de crianças, mulheres histéricas e homens de barba rija (que choravam como crianças), formavam um apertado círculo em seu torno. No centro entrevia-se uma figura esgrouviada, de faces cavadas e rugas profundas que lhe sulcavam o rosto. O seu aspecto era andrajoso, mas caminhava com uma dignidade que eclipsava o seu ar miserável – os seus olhos, particularmente, conferiam-lhe esse ar nobre. Uns olhos azuis, de um aguado que os tornava ainda mais claros, demasiado claros.
A turba e o santo foram avançando aos solavancos pela cidade fora, até que, num momento, pararam. Todos sustiveram a respiração. Era o Templo. O santo entrou no Templo e subiu ao pódio. Prostrou-se, durante uns minutos, tempo este em que o auto-designado condutor da turba, o governador, tomou poses de intérprete, interpelando o santo em tratos solenes:
“- Diz-nos tu, ó santo! Nós, os miseráveis, os que tanto caminharam para te ver, os que envelheceram só da esperança de ouvir a tua voz – os que sofrem! Queremos que nos fales! Dá-nos o teu sábio veredicto!”
Dito isto, passaram alguns minutos até que o sábio se soergueu da sua pose prostrada, contemplando com um rosto imóvel o povo. Permaneceu neste pose durante uma hora, até que esboçou um sorriso e abriu demoradamente os seus braços. Abriu a boca, e puderam ver (os que estavam mais próximos) que não tinha língua.
Temendo um motim e a desordem generalizada, o governador gritou a plenos pulmões: “NADA”!
O povo abriu e fechou as mãos em concha, e recolheu-as junto do coração. Nesse dia, todos tinham levada para os seus lares, bem juntinho ao coração, a sua porção de nada.
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
quarta-feira, 19 de agosto de 2009
Senhor, tornai-nos servos
Era um povo escravo. Humilhado e ofendido na sua própria terra. Os seus opressores usavam-nos como objectos. Menos que objectos, por vezes. Detinham poder absoluto sobre a sua vida e morte.
Juntem, porém, os maiores inimigos, os maiores antagonistas dentro de uma jaula, e acabarão por descobrir afinidades. Sempre dispostos a ver no outro a sua própria sombra, acabarão por se amar. Um dia libertaram-nos.
Como graça pela sua libertação, os seus antigos opressores, agora amigos, ofereceram-lhes um pequeno pecúlio para cultivo. Cultivaram-no. Passaram a usufruir de um património próprio, embora a terra e os seus caprichos fizessem pagar os seus magros rendimentos com amargo suor.
Um dia, um visionário cientista converteu a velha charrua com que cultivavam, operante a força humana, numa potente e eficaz charrua propulsionada a força bovina. Rapidamente, a novíssima charrua deu os seus frutos. Num piscar de olhos, passaram a cobrir todas as suas necessidades e a colher excedentes.
Os mais argutos compreenderam que a charrua poderia também ser útil na criação de um novo meio de transporte, suplantando assim o esforço dos velhos cavalos.
Novíssimas charruas-móvel passaram a transportar homens e mercadorias, dia e noite. O povo enriquecia.
Uma mente ainda mais sagaz resolveu tomar partido do know-how de construção de charruas, sedimentado ao longo dos anos em práticas reiteradas e aperfeiçoadas pela inteligentia local. Tudo isto, conjugado com a mobilidade mercantil, trouxe nova e próspera fortuna ao povo. Já não era necessário trabalhar.
Os seus velhos costumes arcaicos, a dureza das relações sociais e os seus estritos códigos de honra tornaram-se obsoletos, relaxaram-se. O derrame de sangue passou a ser um crime tão hediondo como outro qualquer.
O povo, agora rico, ocioso, saudável e com pavor à violência, reparou, contudo, que apesar de tudo não era feliz. Alguns maldiziam a charrua, e toda a corrupção que havia trazido consigo. Outros suicidavam-se sob o espelhar baço e indiferente dos céus. Outros tornaram-se débeis, derreteram, de tão sobre-humanos que eram. A esmagadora maioria, porém, limitava-se a desligar todos os sensores animalescos e a fruir pacificamente toas as comodidades que a vida pós-moderna lhe proporcionava. Muitos disseram que era o fim-da-história e acenaram aos seus velhos inimigos.
Não se sabe muito bem como acabou esse povo, nem mesmo a verdadeira causa da apatia que se apoderou de todos de forma endémica, mas suspeita-se que diriam: “apenas queremos ser oprimidos”.
Juntem, porém, os maiores inimigos, os maiores antagonistas dentro de uma jaula, e acabarão por descobrir afinidades. Sempre dispostos a ver no outro a sua própria sombra, acabarão por se amar. Um dia libertaram-nos.
Como graça pela sua libertação, os seus antigos opressores, agora amigos, ofereceram-lhes um pequeno pecúlio para cultivo. Cultivaram-no. Passaram a usufruir de um património próprio, embora a terra e os seus caprichos fizessem pagar os seus magros rendimentos com amargo suor.
Um dia, um visionário cientista converteu a velha charrua com que cultivavam, operante a força humana, numa potente e eficaz charrua propulsionada a força bovina. Rapidamente, a novíssima charrua deu os seus frutos. Num piscar de olhos, passaram a cobrir todas as suas necessidades e a colher excedentes.
Os mais argutos compreenderam que a charrua poderia também ser útil na criação de um novo meio de transporte, suplantando assim o esforço dos velhos cavalos.
Novíssimas charruas-móvel passaram a transportar homens e mercadorias, dia e noite. O povo enriquecia.
Uma mente ainda mais sagaz resolveu tomar partido do know-how de construção de charruas, sedimentado ao longo dos anos em práticas reiteradas e aperfeiçoadas pela inteligentia local. Tudo isto, conjugado com a mobilidade mercantil, trouxe nova e próspera fortuna ao povo. Já não era necessário trabalhar.
Os seus velhos costumes arcaicos, a dureza das relações sociais e os seus estritos códigos de honra tornaram-se obsoletos, relaxaram-se. O derrame de sangue passou a ser um crime tão hediondo como outro qualquer.
O povo, agora rico, ocioso, saudável e com pavor à violência, reparou, contudo, que apesar de tudo não era feliz. Alguns maldiziam a charrua, e toda a corrupção que havia trazido consigo. Outros suicidavam-se sob o espelhar baço e indiferente dos céus. Outros tornaram-se débeis, derreteram, de tão sobre-humanos que eram. A esmagadora maioria, porém, limitava-se a desligar todos os sensores animalescos e a fruir pacificamente toas as comodidades que a vida pós-moderna lhe proporcionava. Muitos disseram que era o fim-da-história e acenaram aos seus velhos inimigos.
Não se sabe muito bem como acabou esse povo, nem mesmo a verdadeira causa da apatia que se apoderou de todos de forma endémica, mas suspeita-se que diriam: “apenas queremos ser oprimidos”.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
Nietzshe escreveu sobre uns homenzinhos frágeis escondidos em sistemas implacáveis.
Um Wittgenstein persistentemente kantiano erigiu um templo em homenagem ao Deus mecânico na voz de um sacerdote omnipotente, ditando “estados de coisas” irrefutáveis.
Russel descobriu algumas fissuras nas paredes do templo, limitando-se a desconfiar de fortalezas inexpugnáveis. Intuiu, embora muito provavelmente nunca o tivesse dito, a contingência desses templos construídos contra o Deus pagão, quando eles próprios são templos… de um Deus.
Um Wittgenstein persistentemente kantiano erigiu um templo em homenagem ao Deus mecânico na voz de um sacerdote omnipotente, ditando “estados de coisas” irrefutáveis.
Russel descobriu algumas fissuras nas paredes do templo, limitando-se a desconfiar de fortalezas inexpugnáveis. Intuiu, embora muito provavelmente nunca o tivesse dito, a contingência desses templos construídos contra o Deus pagão, quando eles próprios são templos… de um Deus.
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