segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Senhor, tornai-nos mudos

Era um sábio. Vivia no alto de uma montanha, ainda bastante distante do vale que albergava o cheiro imundo da plebe. Entre estes homens do povo, nasceu um mito em torno do sábio que assumiu contornos religiosos, tendo o vulgo o denominado de santo – o congénere de sábio.
Todos os anos organizavam uma procissão em homenagem ao santo, na qual os jovens mais aptos da aldeia subiam a montanha para colher algumas das ervas daninhas que cresciam na soleira da sua porta. Com estas ervas, as mulheres da aldeia cozinhavam uma sopa que, segundo o povo, curava todas as maleitas – as do corpo e do espírito. Não obstante todo este fervor religioso, não se pense que o sábio recebia os seus temerários visitantes. Mantinha-se entrincheirado na sua velha casa (a que chamavam “ A Gruta”).
Não raro, gritos atrozes soavam pela montanha, fazendo eco no vale aterrador, caindo sob as cabeças descobertas dos aldeãos. Chamavam-lhe “ A Fúria do Sábio”, e dizia-se que soltava estes gritos cada vez que Deus lhe revelava uma “Verdade”. Não se sabe quantas mais “verdades” aguentaria o sábio, mas profetizava-se que, um dia, quando o seu coração estivesse já tão cheio de verdade que não suportasse mais, o sábio desceria a montanha e traria a verdade ao povo. De resto, era o silêncio.
A fama do sábio ecoou por toda a região, e em breve milhares de peregrinos das mais diversas proveniências chegaram à aldeia, na esperança de assistir em primeira-mão à revelação suprema. O dia tardava, e os peregrinos foram assentando arraiais nos arredores da aldeia, ao ponto desta se converter numa autêntica Meca. Construíram-se novas casas e arruamentos para dar resposta ao fluxo migratório. Criaram-se novos serviços e construí-se um enorme templo, cujo tecto era um pódio dourado de onde, segundo os mentores do projecto, um dia o sábio haveria de pregar as suas “verdades”.
O tempo passava, e o resignado povo não dava mostras de desistência. Muitos dos que, ainda jovens, peregrinavam a “Gruta”, eram agora velhos, já de todo demitidos da esperança de partir para o outro mundo sem acolher a “Verdade Suprema”.
Num dia de verão ouviu-se um grande tumulto na cidade. Diziam que havia chegado o dia – que um velho de nobres feições percorria a cidade e que este era, sem sombra de dúvida, o velho santo. Avisou-se o governador da cidade, que se apressou em direcção ao centro do tumulto. Um grupo de crianças, mulheres histéricas e homens de barba rija (que choravam como crianças), formavam um apertado círculo em seu torno. No centro entrevia-se uma figura esgrouviada, de faces cavadas e rugas profundas que lhe sulcavam o rosto. O seu aspecto era andrajoso, mas caminhava com uma dignidade que eclipsava o seu ar miserável – os seus olhos, particularmente, conferiam-lhe esse ar nobre. Uns olhos azuis, de um aguado que os tornava ainda mais claros, demasiado claros.
A turba e o santo foram avançando aos solavancos pela cidade fora, até que, num momento, pararam. Todos sustiveram a respiração. Era o Templo. O santo entrou no Templo e subiu ao pódio. Prostrou-se, durante uns minutos, tempo este em que o auto-designado condutor da turba, o governador, tomou poses de intérprete, interpelando o santo em tratos solenes:
“- Diz-nos tu, ó santo! Nós, os miseráveis, os que tanto caminharam para te ver, os que envelheceram só da esperança de ouvir a tua voz – os que sofrem! Queremos que nos fales! Dá-nos o teu sábio veredicto!”
Dito isto, passaram alguns minutos até que o sábio se soergueu da sua pose prostrada, contemplando com um rosto imóvel o povo. Permaneceu neste pose durante uma hora, até que esboçou um sorriso e abriu demoradamente os seus braços. Abriu a boca, e puderam ver (os que estavam mais próximos) que não tinha língua.
Temendo um motim e a desordem generalizada, o governador gritou a plenos pulmões: “NADA”!
O povo abriu e fechou as mãos em concha, e recolheu-as junto do coração. Nesse dia, todos tinham levada para os seus lares, bem juntinho ao coração, a sua porção de nada.

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