Era um povo escravo. Humilhado e ofendido na sua própria terra. Os seus opressores usavam-nos como objectos. Menos que objectos, por vezes. Detinham poder absoluto sobre a sua vida e morte.
Juntem, porém, os maiores inimigos, os maiores antagonistas dentro de uma jaula, e acabarão por descobrir afinidades. Sempre dispostos a ver no outro a sua própria sombra, acabarão por se amar. Um dia libertaram-nos.
Como graça pela sua libertação, os seus antigos opressores, agora amigos, ofereceram-lhes um pequeno pecúlio para cultivo. Cultivaram-no. Passaram a usufruir de um património próprio, embora a terra e os seus caprichos fizessem pagar os seus magros rendimentos com amargo suor.
Um dia, um visionário cientista converteu a velha charrua com que cultivavam, operante a força humana, numa potente e eficaz charrua propulsionada a força bovina. Rapidamente, a novíssima charrua deu os seus frutos. Num piscar de olhos, passaram a cobrir todas as suas necessidades e a colher excedentes.
Os mais argutos compreenderam que a charrua poderia também ser útil na criação de um novo meio de transporte, suplantando assim o esforço dos velhos cavalos.
Novíssimas charruas-móvel passaram a transportar homens e mercadorias, dia e noite. O povo enriquecia.
Uma mente ainda mais sagaz resolveu tomar partido do know-how de construção de charruas, sedimentado ao longo dos anos em práticas reiteradas e aperfeiçoadas pela inteligentia local. Tudo isto, conjugado com a mobilidade mercantil, trouxe nova e próspera fortuna ao povo. Já não era necessário trabalhar.
Os seus velhos costumes arcaicos, a dureza das relações sociais e os seus estritos códigos de honra tornaram-se obsoletos, relaxaram-se. O derrame de sangue passou a ser um crime tão hediondo como outro qualquer.
O povo, agora rico, ocioso, saudável e com pavor à violência, reparou, contudo, que apesar de tudo não era feliz. Alguns maldiziam a charrua, e toda a corrupção que havia trazido consigo. Outros suicidavam-se sob o espelhar baço e indiferente dos céus. Outros tornaram-se débeis, derreteram, de tão sobre-humanos que eram. A esmagadora maioria, porém, limitava-se a desligar todos os sensores animalescos e a fruir pacificamente toas as comodidades que a vida pós-moderna lhe proporcionava. Muitos disseram que era o fim-da-história e acenaram aos seus velhos inimigos.
Não se sabe muito bem como acabou esse povo, nem mesmo a verdadeira causa da apatia que se apoderou de todos de forma endémica, mas suspeita-se que diriam: “apenas queremos ser oprimidos”.
quarta-feira, 19 de agosto de 2009
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